domingo, 11 de junho de 2023

Um outro anti-poema suspenso dentro de mim para uma cidade hostil


Desço do no ponto final do ônibus no Metrô Anhangabaú. Não desejo pegar outro ônibus para chegar nas mediações da Estação da Luz onde irei assistir uma peça de teatro. Posso andar tranquilamente 1,5 km. Já fiz esse caminho a pé diversas vezes desde que cheguei em São Paulo nos idos de 2005 e gosto e de olhar a arquitetura do centro e suas contradições. 

São 17h30 como ainda aponta o relógio das antigas Lojas Mappin. O vale do Anhangabaú e a praça Ramos de Azevedo encontram-se ainda encobertos pelos horrorosos tapumes de metal da Secretaria Municipal de Cultura de Aline Torres que, desde o início da gestão do Prefeito Ricardo Nunes, resolveu apartar a cultura da vida pública da cidade. Passo apressado pelo Teatro Municipal, pego a Barão de Itapetininga querendo chegar rápido na Avenida Ipiranga. Um carro de da GCM passa acelerado pelo calçadão, eu e alguns meninos pretos ficamos com medo de ser atropelado pelo volante armado da gestão municipal. 

Na Ipiranga encontro vários corpos vivos, desconhecidos e anônimos, largados entre cobertores sacos de lixo e restos de comida nas calçadas de piso paulista. Na esquina com a Avenida São João, alguma coisa acontece em meu coração: um misto de medo e descrédito quando um morador de rua chuta um saco de lixo em minha direção. Por sorte o saco de dejetos estaciona no meio fio a poucos metros de mim. 

Entro na Rua Santa Ifigênia. É domingo: os comércios estão fechados, o clima é de desolação, pessoas fumam crack na porta das lojas, moradores das imediações passeiam apressados com cães, poucos carros passam pela rua. O sol já caiu no horizonte a rua é iluminada ora por luzes de tungstênio, ora por lâmpadas LED construindo um clima esquisito na rua. As travessas da Santa Ifigênia estão apinhadas de usuários de crack que vira e mexe cruzam a rua empurrando carinhos de supermercado cheios de bugigangas. Colocam sobre o alienígena que sou seus olhares fulminantes de raio laser. Tento ser benevolente, mas ao mesmo tempo apresso meu passo em decisão e reteso o corpo em prontidão. Acho mais  seguro caminhar pelo meio da rua. Lembro que tenho na cartucheira de perna uma chave inglesa que pode servir como defesa ase algo der ruim. São 18h no centro de São Paulo e algo suspende dentro de mim. 

Em 2016 eu trabalhei muito naquela região, quando fiz uma residência artística no Amarelinho do Pessoal do Faroeste na Rua General Osório quase com a Rua do Triunfo. Eu saia do meio da cracolândia às 23h  para ir para a pé para um boteco na Rua Cesário Mota Jr e algumas vezes retornava para continuar trabalhando na sala do grupo às 3h ou 4h da manhã e não sentia medo. Por que estou sentindo medo em 2023? 

Eu vivi em outros tempos uma outra cidade menos hostil, com políticas humanistas de assistência social como o extinto Programa Braços Abertos do Prefeito Fernando Haddad e da Secretária de Assistência Social Luciana Temer. Posso dizer que o programa gerava outros comportamentos e outras relações na região. E digo isso porque vivi a região naquele momento e vi com meus próprios olhos. 

A atual secretaria de Assistência Social parece inexistente sob o comando de Carlos Bezerra Júnior. Nada faz de fato pela cidade, mas segue na linha marqueteira da gestão Ricardo Nunes de inaugurar placas pela cidade. Vivemos uma política de hostilidade com a realidade. 

Chego na sede da Cia Mungunzá de Teatro para assistir a peça "Poema Suspenso para uma cidade em queda" e me sinto numa ilha no meio da cracolândia. Assisto uma peça sobre a vida apartamentos e a imobilidade da queda de um corpo do alto do prédio. Um corpo que não cai e ali fica suspenso entre as letargias das vida dos outros moradores. Espetáculo com fortes traços pós dramáticos e flertes com o teatro de forma épica, atuações precisas e estética muito bem pensada. Enquanto artista com fortes raízes na técnica de som e luz fico positivamente agraciado com a técnica executada em cena a vista do público. A casa está cheia, com cadeiras extras e rearranjos para que todos possam assisti, algo raro na cena cultural da cidade de São Paulo dos tempos atuais tão brutalizados. 

O certo é que queria poder falar mais sobre o espetáculo quando comecei a escrever esse texto. Mas naquele momento em que assisti a peça existia outro anti-poema suspenso dentro de mim: o anti-poema de suspensão da própria poesia dentro de mim diante de uma cidade que cada dia é mais hostil, comigo e com os desconhecidos anônimos que habitam ruas e calçadas. Como disse em outros tempos sombrios o poeta Bertolt Brecht: "Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime, pois significa silenciar sobre tanta injustiça?"


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