quarta-feira, 30 de abril de 2014

INÚTIL CANTO INÚTIL PRANTO NA MÃO DOS OPRESSORES


"(...) E as labaredas cresciam e lambiam os vinte e cinco homens, e os gritos e os gemidos e os pedidos de socorro se perdiam nas imundas paredes, frias e úmidas, onde eles escreveram blasfêmias ditadas pela impaciência e pelo desespero. E o fogo crescia e a fumaça sufocava, e o fogo queimava, e o desespero desesperava, e os homens se debatiam, um querendo usar o corpo de outro como escudo contra as chamas, e disputavam com fúria e toda violência o direito de enfiar a cara no excremento da latrina, para escaparem do sufoco da fumaça. E o fogo queimava, a fumaça sufocava, a carne ardia, assava, e o fedor fedia, e a fumaça sufocava os pulmões cheios de cavernas se rompiam, e a tosse, e a tosse, e a tosse. E o cheiro da carne assada era o cheiro da carne humana assada, um cheiro doce, doce, enjoativo, doce de dar náuseas, doce carne humana, a doce carne humana, que só é doce quando arde de amor, ardia de desespero, e o odor era doce, terrivelmente doce, nauseante."
Plínio Marcos

Eram doze empilhando pneus. Eram sessenta e quatro apertados num pequeno espaço onde cabiam cinquenta e quatro. Eram doze cidadãos empilhando pneus. No coletivo, que vinha atrás do primeiro, eram cinquenta e nove comprimidos após terem passado o dia sendo oprimidos. Eram doze contribuintes empilhando pneus. No terceiro carro eram sessenta e três sufocados, asfixiados, abafados numa lata sobre rodas cortando o asfalto. Eram doze pessoas empilhando pneus. Eram sessenta massificados, sujeitados, jugados, coagidos, violentados, aviltados, vexados e não identificados, abafados naquele ônibus em que mal cabiam cinquenta e quatro. Eram doze movimentando-se com pneus. Eram, até o momento, duzentos e quarenta e seis parados, uns contra os outros, sem poderem ir nem vir.

Eram duzentos e quarenta e seis seres humanos empilhados nos assentos e corredores dos coletivos. Eram doze empilhando pneus. Eram duzentos e quarenta e seis premidos entre seus pares, impossibilitados de irem para suas alugadas casas. Eram doze no quintal de suas próprias casas, preocupados com o estacionamento de seus próprios negócios.  Eram duzentos e quarenta e seis seres humanos desumanizados, com rugas nas testas, olheiras abaixo dos olhos, cheiro forte embaixo do braço, os ombros arqueados, pés machucados e braços cansados. Eram doze pela primeira vez empilhando pneus.

Mas meu canto não é por aqueles doze que diziam que estavam se rebelando. Meu canto é por aqueles duzentos e quarenta e seis esmagados de corpo e alma dentro de gôndolas automotivas. Meu canto não é por aqueles que só pensaram em si. Meu canto é para aqueles que não saíram nos noticiários, mas que estavam lá engarrafados. Meu canto é para duzentos e quarenta e seis que, com o passar dos minutos e a parada de outros ônibus, se tornavam setecentos e trinta e oito e que mais tarde chegariam a somar mil quatrocentos e setenta e seis. Meu canto é por aqueles que só desejavam chegar e tiveram suas esperanças de serem salvos por um Corredor frustradas em função de doze.

Eram doze que haviam empilhado os pneus. Para os mil quatrocentos e setenta e seis esmagados em diversos ônibus só faltava peste. E a peste viria. Entre eles surgiu a barbárie, se acotovelavam, se brutalizavam, se espancavam, se xingavam e se culpavam mutuamente pela situação. Lá fora haviam pneus empilhados por doze cidadãos contribuintes. Doze cidadãos contribuintes zelando pelo bem de seus comércios e do uso da rua asfaltada com o imposto deles. Pelos mil quatrocentos e setenta e seis, enlatados que nem sardinha, ninguém zelava.

Os mil quatrocentos e setenta e quatro não tem consciência de classe, muito menos identificação com sua própria classe. Os doze empilharam pneus e posaram para as câmeras como os conscientes da sociedade. Os mil quatrocentos e setenta e quatro só queriam escapar dali, chegar em casa, tomar um banho, matar a fome, assistir a novela e dar um beijo nas crianças antes de irem dormir para recomeçar na manhã seguinte. Os doze queriam poder estacionar os seus carros de IPVA pagos na frente de suas casas sem a zona azul, queriam que seus clientes parassem ali sem pagar para gastar mais comprando em suas lojas. Não sabem de nada os mil quatrocentos e setenta e quatro coagidos em ônibus parados. Os doze contribuintes nem querem colaborar para que eles saibam alguma coisa.

A cada novo ônibus que chega somam-se mais oprimidos, chegando a mil quinhentos e quarenta, mil seiscentos e três, mil setecentos e vinte e dois esmagados de corpo e alma contra bancos de espuma barata e canos de metal, dentro de uma lata sobre rodas. Os bancos, além da espuma, tem uma armação de plástico na qual são escritas frases sem nexo criadas dentro do desespero de não saber se comunicar, estando aprisionados na desumanidade das relações econômicas. Vivem tomando bordoadas. As bordoadas doem e viver passa a ser doloroso também.

O carrasco sabe quando deve bater, a única coisa que lhe dói é o bolso. Ele não tem do que reclamar, dorme bem, almoça bem, tem seu comércio, sua empresa, seus empregados e aprendizes. O carrasco não sente dor física, nem moral, sua dor é monetária. Sua crise é uma baixa financeira. Tempo é dinheiro e ter dinheiro é ter tempo, por isso o carrasco tem todo o tempo para bater.

Aquele que se oprime no coletivo faz parte do jogo. Vende seu tempo em troca de dinheiro, ganha dinheiro e apanha. Quando termina o expediente, pensa que já levou bordoada o suficiente. Engano, no trânsito para casa leva uma nova bordoada. Apanham, gemem e choram resignados no trabalho para apanhar de novo da organização social. Acabam por aceitar as afrontas como condições inexoráveis da vida. E agora estão parados amontoados dentro de ônibus. Sonham. Sonham com o dia em que serão o cidadão contribuinte, com seus empregados, com suas casas próprias, com seus comércios e empresas. Sonham com o dia em que cobraram leis estapafúrdias porque pagaram impostos altos. Sonham com o dia em que empilharão pneus e aparecerão na televisão no horário nobre e serão a primeira notícia nos sites da internet. Nesse dia serão “meritários” da justiça medíocre, hipócrita e burocrática destinada ao cidadão contribuinte.

Não importa que mil setecentos e vinte duas pessoas estejam aprisionadas dentro de vinte oito latas sobre rodas, se o direito de doze contribuintes estiver assegurado. Tudo bem, mil setecentos e vinte e dois esmagados, se doze podem manter e aumentar a suas rendas. Eles sabem. Os doze sabem. Não precisam dividir o pão, não precisam dividir os lucros. Isso mantém o sistema. Basta que os mil setecentos e vinte e dois oprimidos tenham comida, consigam pagar as contas e sobre para a cerveja no fim do dia. Basta que os oprimidos possam viajar uma vez ao ano durante as férias remuneradas de vinte dias, que já estão domados e incluídos no sistema sem revoltas. Às vezes bastava garantir o álcool ou a maconha para apaziguar os corações revoltosos na letargia. O tempo se tornava lento e intransponível. Um tempo tenso, estagnado na lentidão de seu próprio tédio naturalizado. Cada indivíduo preso na solidão de seu próprio tédio.

A cidade cheirava a esgoto. A cidade sempre cheirou a esgoto. Dentro dos vinte e oito coletivos parados os passageiros cheiravam mal, quase igual a esgoto. Nojo. Todos sentiam nojo. Suavam. Sentiam nojo de si mesmos e dos outros a sua volta. Nojo do ônibus. Nojo das palavras que trocavam. Pararam de falar dentro dos coletivos. Ninguém se impunha. Cada um fechado em si mesmo. O silêncio pesou sobre mil setecentos e vinte e dois seres humanos empilhados e divididos em vinte e oito ônibus. Sentiam-se apodrecer, sentiam-se perecer dentro de caixas de latas automotivas. Resolveram lutar pelo pouco que poderia haver de vida em seus corpos. Um gritou culpando o cobrador, o cobrador culpou o motorista e o motorista culpou o ônibus à frente. Dois coletivos à frente um dos mil setecentos e vinte e dois esmagados quebrou um vidro e saiu pela janela esfacelada, foi seguido por mais cinco, os outros sessenta e cinco saíram pela porta, que desde o início estava aberta.

Os doze cidadãos contribuintes acharam que os mil setecentos e vinte e dois oprimidos tinham enlouquecido de vez. Doze atearam fogo nos pneus empilhados. Os mil e setecentos e vinte e dois oprimidos começaram a sentir o cheiro intoxicante de fumaça. Ardia os olhos e não era diabetes. Os oprimidos são inocentes da maldade dos opressores. Os interesses dos mil setecentos e vinte dois só tem serventia quando também é interesse dos doze opressores contribuintes. O cidadão contribuinte só se preocupa com seus próprios interesses e nada mais. O oprimido é oprimido mesmo.

Doze atearam fogo aos pneus empilhados. Mil setecentos e vinte e dois gritaram dizendo que só queriam chegar em casa num tempo aceitável. Os pneus ardiam e os gritos dos mil setecentos e vinte e dois desapareciam na enorme parede erigida para separar as classes. E as labaredas ardiam e a fumaça sufocava o grito e o TV não filmava a maioria. A TV era paga por doze cidadãos contribuinte e não por mil setecentos e vinte e dois oprimidos que iriam assisti-la, mesmo não tendo aparecido nas imagens. Aquele que deveria zelar por todos mandou as “metrancas”, os cassetetes e o gás de pimenta para calar mil setecentos e vinte e dois que já estavam sufocados pela fumaça dos pneus queimados. Nada disso era necessário, pois mil setecentos e vinte dois são menos violentos quando oprimidos do que doze opressores.

A luta virou cinza e fumaça na vida daqueles que realmente deveriam gritar por um Corredor para chegar em casa em menos de três horas. O cidadão contribuinte ainda tem a síndrome de Nero, pirômanos de plantão travestidos de bons cidadãos. De pneus na Lins de Vasconcelos à Favelas do Moinho ou Heliópolis a diferença é o tamanho das labaredas, a destruição humana em função da riqueza de uma minoria e as mãos que incendeiam são muito semelhantes.

(OBS.: Em 1977 Plínio marcos fez a primeira tiragem de um livreto chamado Inútil Canto Inútil Pranto Pelos Anjos Caídos. O livro é recheado de crônicas perturbadoras, que expunham a miséria e a exclusão de personagens reais da sociedade brasileira. Após 37 anos da escrita do livreto a miséria humana ainda reina e ainda temos anjos caídos e mãos incendiárias).




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