terça-feira, 28 de maio de 2013

IOLANDA

Acordou sentindo a boca dela em seu dedão do pé. Não estava mordendo porque não tinha dentes. Mas a pressão da placa que havia sobre a gengiva dela machucava um pouco. Não entendeu muito bem o que estava acontecendo. Olho para o céu, protegeu os olhos do sol com a mão, olhou para o mar e, por último, olhou para o filhote de tartaruga que ainda roía o seu dedão pé. “Vou chutá-la em direção ao mar”.  Olhou em volta, não havia ninguém na praia: “Não é um crime ambiental se ninguém ver”. Olhou bem para a tartaruga e, achou que ela tinha uma cara simpática. Ela era um tipo de bebê enrugado mamando em seu dedão do pé. Isso era engraçado. Mas o que mais encantou Antônio foi o olhar daquela pequena criatura. Um olhar de curiosidade misturado com medo. Aquele olhar comum entre os neófitos na terra. Foi esse olhar que o obrigou a não realizar nenhum mal contra a tartaruga. “Nunca tive um animal de estimação. Esta pode ser a hora”. Bastava que ele terminasse a última cerveja da caixa de isopor, derramasse o gelo na areia da praia e pronto, colocaria a tartaruga ali dentro junto com água do mar e iria para casa. Prenderia a caixa com o cinto no banco do carona a deixaria a tampa semi-aberta para que o animal não sufocasse. “Se ninguém ver, não vai ser um crime ambiental. E ainda estarei salvando esta tartaruga de ser chutada por um banhista incomodado”.
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Foram três horas de coração batendo forte na estrada, 180 minutos de dúvida se devia estar fazendo o que estava fazendo, 10.800 segundos fumando cachimbo para se acalmar e não demostrar para a polícia rodoviária que ele era um menino com a mão amarela. Sim, estava fazendo algo errado, mas não entendia porque estava nesse estado de excitação. Parecia um adolescente. Quando a estrada permitia desviava um pouco os olhos da pista e observava se tudo estava bem com a tartaruga. Realizou uma única parada: numa loja de produtos aquáticos para comprar um aquário.
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Antônio abriu com pressa a porta de seu apartamento. Em sua primeira entrada em casa depositou o isopor com a tartaruga em sua poltrona e limpou o móvel com um gesto de braço, enviando ao chão meia dúzia de cadernos de anotações e alguns cachimbos. Sua segunda entrada foi com o aquário que depositou no móvel que havia desocupado minutos antes. Sua terceira entrada em casa foi a mais sem cuidado que houve. Havia voltado ao carro para buscar a mala e algumas tralhas de praia sem importância que acabaram ficando depositadas no tapete próximo a porta. Correu até a cozinha e religiosamente trouxa uma jarra de água após a outra para encher o aquário. Ligou o filtro e a lâmpada que emitiria os raios UVs (dica do atendente do pet shop), transferiu cuidadosamente a tartaruga da caixa de isopor para sua a caixa de vidro. Pegou um pouco da ração (outra valiosa informação do atendente do pet shop) e colocou um bocado na água.  Sua nova companheira estava instalada e alimentada.
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Esperou a inicialização do Windows em pé frente ao computador. Toda espera era o prenuncio de um parto dolorido. Sua impaciência falava mais alto do que qualquer outra coisa. “Pesquisa Google. Preciso saber tudo sobre tartarugas!”. Não ligou para ninguém informando que havia voltado. Passou todo o tempo pesquisando sobre tartarugas, suas espécies, seus hábitos, seus comportamentos. Descobriu muita coisa valiosa. Descobriu comunidade de outros criadores de tartarugas, soube através deles os alimentos preferidos das tartarugas, a necessidade do sol para a vitamina D3, aprendeu que ela precisaria de um terrário seco. Soube dos flagelos que as pobrezinhas passavam pelo descuido de pessoas que deixavam sacos plásticos no mar: plásticos que se confundiam com águas vivas, fazendo-as engasgar. Assustou-se ao saber que em algumas regiões do Caribe as tartarugas são caçadas para servirem de ingredientes de uma sopa considerada afrodisíaca. Olhou para o aquário, o qual a tartaruga estava explorando: “Como alguém pode comer um ser tão doce como este?!”.  Cada nova página, cada detalhe, cada filigrana, fazia com que ele, estranhamente, se encantasse muito por esses seres da espécie chelonia.
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Ela precisava de um nome. Como iria chama-la nos momentos de carinho e durantes as brigas?
Foi até o aquário e pegou o ser que o habitava. Segurou-o com as duas mãos e aproximou-o do rosto. Olhou bem para a cara da tartaruga: “Mesmo sendo um filhote ela tem cara de velha”... pensou... “Iolanda! Tu serás Iolanda”.
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Passou a ler tudo que falava de tartarugas. Passou a comprar livros de tartaruga. Cuidar de Iolanda tinha se tornado mais interessante do que importar charutos, tabaco e cachimbos pela internet.
“Quando a adultas podem chegar a pesar até 600 kg e a medir até 2 m”. Olhou para Iolanda: “Mas ela é tão pequena. Como ela poderá crescer tanto. Não. Do meu lado ela vai ser sempre pequena, Minha pequena Iolanda”. Sentado na poltrona ao lado do móvel que abrigava o aquário, virou mais uma página do livro “A vida Secreta das Tartarugas” e deu uma enorme baforada no cachimbo.
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Antônio passou a voltar sempre mais cedo para casa: “Iolanda precisa de comida e que eu troque a água”. Ele não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas entendia que era responsável por Iolanda.
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Numa certa manhã Antônio percebeu que Iolanda ocupava exatamente a metade do aquário que ele havia comprado meses antes. Iolanda era mais que o pequeno espaço que ele havia destinado a ela. Ele precisava dar um jeito. Isso não poderia ficar assim: “Vou comprar um aquário maior”.
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Às quinze horas a campainha tocou. Quando abriu a porta dois homens entraram com placas de vidro e, sem muitas palavras, montaram no espaço destinado a sala em sua quitinete um novo aquário.
Nessa mesma tarde, em frente ao prédio onde morava Iolanda e seu protetor, um estudante completou os móveis da sala de sua república ao salvar do lixo uma poltrona e um móvel. O estudante deixou para trás um aquário que não lhe tinha serventia e um saco com pequenos objetos todos decorados com o nome “Iolanda”.
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Quando Antônio saia para fazer compras 50% do que comprava era para Iolanda, 20% para melhorar a vida de Iolanda e 30% restantes de coisas para si mesmo.
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Um ano havia passado desde aquele dia que Antônio havia sido surpreendido na praia por uma testudinata. Sua vida não era mais sua.
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Mais uma vez Iolanda não cabia no aquário. Era um problema. O aquário de Iolanda já era quase do tamanho do apartamento só sobrava um pequeno espaço para a cama de Antônio, para a geladeira e para o micro-ondas. O PC fora trocado por um notebook para que sobrase espaço. Os livros foram doados para sebos e os poucos móveis haviam sido depositados na calçada ao lado da lixeira.
Não era mais possível ligar para o vidraceiro. Na última vez que ligara, pedindo a construção de um aquário maior, havia sido chamado de louco.
Pegou o cachimbo, colocou um pouco de fumo, levou-o até a boca, acendeu e deu algumas baforadas enquanto olhava para aquele ser encantador de nome Iolanda. Iolanda não deu muita bola para Antônio. Iolanda era um ser que sabia viver paralelamente ao outro tendo-o como completamente desnecessário. Enquanto fumava Antônio, olhou para a quitinete que não era mais quitinete, para os espaços que não tinham mais móveis, olhou para o aquário e para o ser quelônio que o habitava, percebeu que havia um desconforto naquela quitinete: “Isso é insustentável!!!”.
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Antônio com um cobertor embaixo do braço abriu bem a torneira da banheira, atravessou o que ainda restava da casa sem o aquário, saiu pela porta de sua quitinete e trancou muito bem a porta. Sentou no corredor ao lado da porta abriu uma embalagem de Durepoxi e misturou a parte cinza com a branca, solda pronta vedou a fechadura para que a água não escapasse. Cobriu-se e deitou, virando para a parede a fim de não ser incomodado pela luz do corredor.
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Seu Gerson, o porteiro recebeu duas chamadas estranhas naquela noite. Uma do 7°andar perguntando porque um dos vizinhos estava dormindo no corredor e outra de um morador do 6° andar reclamando de uma enorme infiltração pela quitinete inteira.

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