terça-feira, 5 de junho de 2012

Café com F.K.


Bebia de uma xícara de metal, gasta pelo tempo, goladas homeopáticas. O olhar do homem na cadeira de rodas está voltado para o lado de fora. A paisagem cinzenta do dia não trás nenhum interesse, mas para FK parece ser um objeto digno de análise minuciosa.

Está frio... o café... o café está frio, por isso não o ofereço... 
Pro almoço hoje só tem sopa magra de peixe... Não vou convidar ninguém para jantar... Nem sei por que vocês vieram aqui...
...Sei muito bem como está a minha saúde, mas é tolice se preocupar...

Em contraste com a palidez da doença ele vestia uma reluzente camisa verde com detalhes vermelhos, que combinavam bastante com a calça marrom. Era o arremedo de uma árvore bichada (mostrando um colorido vivo na casca para esconder o interior estragado, apodrecido, carcomido pelos vermes. Os pés queriam estar no chão mesmo com as raízes, agora, não tão  firmes como um dia foram). Notando a análise silenciosa  que era feita acerca do seu modo de vestir  soltou sem nenhuma pudor:

Gosto destas roupas coloridas, branco me lembra hospital...

Houve mais silêncio ainda na sala. Os olhos dos presentes pregados em FK. Os olhos de FK mirando algo num infinito gris. Depois de alguns minutos, que se assemelharam a uma eternidade, o próprio FK quebrou o silêncio mais uma vez:

Dia desses fiquei sabendo, através de um desses programas de TV, que vou ficar muito tempo neste mundo... Parece que de uns tempos para cá as pessoas passaram a gostar de fazer hora extra na terra... E isso talvez, TALVEZ, aconteça comigo. Já até passei a  imagina que horror vai ser ter que aguentar as pessoas a minha volta por muito tempo... e também o esforço que vou precisar para fazer para que elas me aguentem por um longo tempo, sem que nenhuma das partes fique com vontade de intentar um assassinato...

Outro silêncio que, por mais que fosse igual, parecia ainda mais silencioso que o anterior. Os olhos de todos  miraram o chão. FK nem percebeu a falta de coragem que tinham de encará-lo porque permaneceu com o olhar no horizonte. Não fez nenhum esforço para olhar as pessoas envergonhadas a sua volta. Não sentia prazer em ver os olhos ofendidos, sentia prazer em ofender. O deleite em escolher as palavras que iriam ferir era maior que o que poderia ter ao mirar olhos feridos. A visão dos olhos feridos somente servia para desviar o ofensor do seu intento. Para ser um bom torturador é necessário saber fugir dos olhos.

..pessoas vivendo mais com os avanços da ciência... pessoas vivendo até os 90, 100, 110 anos... Quem sabe eu chegue aos 100... Por isso é bom não gasto nem um centavo. Agora estou relativamento novo, mas desejo representar o meu papel de homem por todos os anos que viver. Sei que hoje em dia existe aquela pílula azul, mas o grande problema é que além de ficar cheio de  dificuldades e lentidões vou estar principalmente repulsivo, abominável aos olhos femininos... Conheço-as bem... Elas não virão me procurar com gosto e precisarei do meu dinheiro... Se bem, que mesmo hoje elas veem por conta do meu dinheiro... mas sou bem moderado, só gasto o suficiente para levar algumas vagabundas interesseiras para a cama... Então economizo o que posso...

... Silêncio... Como se fosse um grande manipulador do tempo FK esperou minutos suficientes para criar um grande efeito e desabou numa gargalhada. O riso fez todos tremerem. Alguns tiveram a sensação de que era a sala que estava tremendo, sensação de um terremoto criado subitamente pelo riso de FK. Mas a gargalhada de FK, no estado em que se encontrava, não estava tão potente assim. O silêncio da sala, magicamente adensado a cada pausa do orador moribundo, somado ao exame de consciência forçado nos presentes e a violência progressiva imprimida ao discurso iam criando a ilusão de um abalo sísmico. Aproveitando a forte impressão que seu discurso tinha causado na audiência FK continuou com seu monólogo:

É bom lembrar que já aceitei minha condição de imundo e pretendo viver até o meu último dia chafurdando na lama...
Eu posso...
Sou rico e não devo nada a ninguém.
Tenho direito consuetudinário para escolher viver isso... o costume de ser rico me deu direitos ... basta estudar história para saber que as pessoas que ficam ricas ganham vantagens... Tem certas sujeiras que o tempo encarrega-se de apagar; mas ele, o tempo, não é eficiente e sempre resta uma mancha que se junta com outra mancha fazendo com que estejamos cada vez mais sujos. Nem toda a riqueza do mundo poderia me arrancar a sujeira entranhada na minha pele... portanto a gente vai se acostumando a viver na sujeira e se assustando conforme percebe que isso é um tremendo prazer. Viver na lama é viver com gosto e satisfação, a satisfação é suja, asquerosa. 

Alguns dos presentes franziam o nariz como se embaixo dele, FK,  estivesse algo asqueroso. Como se algo naquela sala estivesse apodrecendo e incomodando a cada novo instante.

Ora, mas a santidade não é pior? pergunto aqueles santos-do-pau-oco que agora, somente em função do costume, estão fazendo cara de nojo. Renunciar aos seus desejos mais profundos não seria de uma certa forma sujo? Não uma sujeira real, mas uma possibilidade latente de sujeira sempre presente. Ser santo é não exteriorizar a sujeira. É negar o que esta guardado no mais profundo do ser humano. Se bem que alguns santos, pelo que sei, foram tão sujos quanto eu, participaram de orgias que deixariam qualquer devasso com inveja. E que se espanta com isso é porque ainda não percebeu que TODOS VIVEMOS NA LAMA! O ESGOTO É NOSSO LAR! alguns negam, mas eu afirmo! ...Sou sincero e isso irrita os hipócritas.

O silêncio cortava a sala. FK não sentiu nenhuma vontade de continuar com seu discurso. Mas continuou a incomodar: quebrando o silêncio ou sorver o último gole de café e ao direcionar a cadeira de roda até a varanda. Parecia que queria tomar ar fresco? Será? Lá FK permaneceu por horas olhando o vazio. Os presentes sairão um a um sem dirigir uma palavra ao doente. FK não desviou nem um centímetro sua cadeira de rodas, que impedia a passagem, quando os presentes resolveram, um a um, sair de cabeça baixa e sem nenhuma palavra.

 No dia seguinte algumas pessoas falavam que FK, quando parado na varanda, estava, na verdade, enfrentando a Sra Dona Morte. Diziam que o discurso que havia proferido era intencionado a petrificar a Foiçadera. Nada melhor do que um monstro para encarar outro. E os boatos corriam pelas ruas: "Parece que o velho moribundo estava discursando para a Morte"; "FK teve coragem de encarar a Ajudadora na soleira da porta!"; "Ele fez a Indesejada recuar"; "Diante da amargura do homem a Morte fez uma reverência e foi embora com a foice entre as pernas"; "Para fazer isso com o Anjo da Morte só tendo parte com o Tinhoso". O certo é que  a Morte voltou para levá-lo só anos depois, quando FK já tinha 100 anos e já havia torrado todos os seus tostões em álcool e prostitutas. Dizem que a Morte só voltou para buscá-lo porque havia percebido, e agora sabia melhor, que era a dona de um poder inexorável e que podia sim enfrentar e vencer qualquer homem sujo. 

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