domingo, 6 de junho de 2010

Homem espelhado


"Partiu-se o espelho mágico em que me revia identico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim! ... "
Fernando Pessoa

Certa manhã Gregório acordou de pesadelos e teve medo de se olhar no espelho. Tinha medo de que houvesse se metamorfoseado em um monstro mítico durante o sono e que, a partir de então, seus olhos tinham o poder de petrificá-lo se, através do reflexo, os olhasse bem no fundo. Ele não estava pronto para uma petrificação e resolveu que naquele dia não se olharia no espelho. Evitaria o seu reflexo custasse o que custasse. Faria isso só por garantia daquela estranha sensação ser verdadeira.
Entrou no banheiro desviando o rosto do aparelho de reflexão encontrado na parede. Com os olhos bem apertados, quase esmagados para garantir que não se abririam, abriu o armário do espelho e deixou-o aberto enquanto escovava os dentes. Naquela manhã não certificou se a gravata estava bem colocada, afastou-se bem da porta do microondas, tomou o café como os olhos parados num ponto na parede, tudo isso para não surpreender-se olhando no pires ou no açucareiro sua imagem refletida. Enquanto estava em casa evitou tudo que pudesse trazer a consciência da sua imagem.
O grande problema veio no caminho para o trabalho. Era difícil desviar das janelas e portas de vidros que refletiam, mesmo que refletissem difusamente era sua imagem de alguma forma. Também haviam carros bem encerados e com vidros escuros que serviam como espelhos em movimento. Qual seria a tática para fugir de seu reflexo? Na primeira tentativa de desvio da visão que Gregório fez, focando o chão, trombou no primeiro passante que vinham em sua direção, o qual, totalmento "solidarizado" e "consciente" dos problemas de ordem subjetiva do nosso personagem falou: “Olha por onde anda, mané! Perdeu dinheiro, foi?” ... Não, Gregório não havia perdido dinheiro. Não havia perdido nada. Ele só não queria virar pedra e perder uma certa liberdade de movimentos que tinha. As pessoas não aceitariam que ele andasse do jeito que havia andado até aquele momento. O que fazer? Como chegar ao trabalho sem se ver espelhado em algum lugar? Ficou parado ao lado de um poste olhando para o chão enquanto pensava em uma alternativa. Mas quanto mais pensava, mais o problema aumentava: não podia olhar nem para o chão, nem para o céu, muito menos andar de olhos fechados, pois trobaria nas pessoas. Talvez pegar um táxi. Seria mais fácil desviar do reflexo de um automóvel só. Com alguém guiando, usando os olhos por ele, não precisaria fazer muita força para desviar da sua imagem. Bastava entrar, fechar os olhos e falar para onde deveria ir.
Desfocou o olhar para evitar a nitidez que poderia vir de uma surperfície reflexiva e acenou para o primeiro carro branco com um letreiro em cima que viu. Olhou para baixo e esperou as rodas aparecerem ao lado da guia, tateou a porta até encontrar a maçaneta, entrou e falou o endereço para o taxista. Olhava para o carpete do carro para não deparar-se com espelho retrovisor. Logo depois que o motorista deu a partida ele reclinou a cabeça para trás mantendo os olhos fechados e suspirou aliviado. Tinha resolvido parte do seu problema.
Ao descer do táxi, na porta do trabalho, parou o olhar no chão para evitar os vidros espelhados do prédio comercial. Dentro da sua sala evitou tomar café em razão da bandeja de inox e do metal bem lustrado da cafeteira. Por volta do meio do dia o cansaço, causado pelos cuidados com os espelho, escureceu sua vista e dentre a escuridão surgiram imagens. Primeiro apareceu a imagem de seu pai apontado-lhe o dedo na cara e dizendo: "você nunca vai ser ninguém na vida, moleque"; logo atrás veio sua mãe que vertendo rios de lágrimas lamentava: "por que Maria foi embora? ela era uma moça tão alegre, eu sei que foi ela que um dia falou que estava indo embora e foi sem dar explicação, mas só pode ter sido culpa sua, você sempre fez as coisa erradas, eu, como boa mãe, tentei te dar uma boa educação, mas você sempre foi revoltado, meu filho!". As duas figuras crescerem a sua frente, a neblina dispersou num repente e ele acordou em sua mesa do escritório com a gravata frouxa, a cara amassada na mesa e os cabelos molhados de suor. Gregório queria lavar o rosto, mas no banheiro da empresa havia um grande espelho que refletia em uma escala insurportável de um por um. Seria insuportável tal visão. Lembrou que na gaveta de sua mesa havia uma velha toalha de rosto, cuidado de sua ex-mulher, cuidado bem vindo neste momento. Pegou a toalha, secou o rosto nela e recordou da passagem da via sacra em que o rosto de Jesus ficava impresso em um pano que havia sido usado para secar o seu rosto. Desesperado, providenciou para que a toalha marcada pelo seu suor fosse logo para a gaveta, longe de seus olhos.
O dia passou rapidamente e o desespero da visão de seu próprio rosto diminuiu um pouco, o suficiente para ele caminhar até o metrô, mas não em quantidade suficiente que fizesse com que ele desgrudasse os olhos do chão. Entrou na estação o mais rápido possível. Este era o momento mais odiado do dia, centenas de pessoas se espremiam na plataforma e dentro dos trens para conseguir voltar para casa. Ele não gostava de ser empurrado e muito menos de empurrar pessoas; mas, sem que isso o incomodasse muito, deixou-se ser empurrado para dentro do vagão. Estava agora sustentado entre pessoas desconhecidas, era estranho, como pessoas que nunca ele havia visto na vida, salvo duas ou três que pegavam o metrô no mesmo horário que ele, podiam ampará-lo neste momento de total entrega ao levar das coisas. Passou a primeira estação e nada mudou, passou a segunda e ainda estavam uns apertado nos outros, mas quando chegou na quarta muitas pessoas desceram. Gregório pode ajeitar-se melhor no vagão segurando um dos apoios de metal e de frente para a janela do vagão teve uma dessagradável surpresa. Quando o vagão entrou no túnel, o vidro, que até aquele momento mostrava a plataforma lá fora, passou a mostrar o seu reflexo. Pela primeira vez naquele dia foi inevitável olhar para o fundo dos seus próprios olhos. Sua imagem parecia desconfiar que não estavam, a imagem e ele, seguindo o reflexo certo. Ele havia escolhido em outro tempo o mais frágil de todos os reflexos e, claro, os espelhos que primeiro deram a sensação de unidade eram de material fraco e foram quebrados, largando pelo chão minúsculos fragmentos de si mesmo. E assim, rituais alegres de chuva feitos em outros tempos revelaram-se hoje em tempestades que ele não sabia controlar.
Neste instante de desespero em que encontrava-se olhando para si mesmo percebeu que os espelhos mostram as verdades que se encontram nos fundos dos olhos e isso causa petrificação de espantamento instantâneo. Ele não queria viver essa sensação naquele momento, tinha medo da verdade, do conteúdo do seu coração, da sua mais verdadeira consciência que o petrificaria, revelação profunda que não poderia ser revelada assim, como estava sendo revelada.
Percebeu neste momento que estava perdendo os cabelos, que a vida que havia escolhido tinha criado em volta de seus olhos rugas e olheiras. Como isso doia. Era o homem, ele mesmo, em confronto com o homem, ainda mais ele. Dentro de seus olhos poderiam ser lidas várias coisas. Seus olhos tinham medo da solidão, do descaso, do abandono e da morte das pessoas queridas. Desta forma precebeu que tinha medo de si mesmo e que quem havia causado todas as perdas e decepções dos últimos tempos, não haviam sido outros e sim ele mesmo. Cada coisa que passava pela sua cabeça doia mais, cada vez que percebia que era seu próprio algoz era como se descesse mais a guilhotina que havia preparado para si mesmo. Porra! Não podia colocar a culpa em ninguém ele havia escolhido a sua forma de colocar-se no mundo. Por mais que o mundo não fosse da forma ideal que ele imaginava, a culpa não era de terceiros e sim dele mesmo, em primeirissima pessoa.
Gregório queria saltar daquele metrô, na verdade, queria saltar no vão do metrô. Olhou para o chão, respirou fundo e pensou: "se a culpa era todas daqueles olhos acusadores que pertenciam a ele mesmo, porque sofria tanto? era só resolver o problema com ele mesmo". E ai estava o grande problema: havia tentado o dia inteiro fugir de si mesmo e não conseguira.

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